Exemplo de determinação

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A senhora Dorina de Gouvêa Nowill, 88 anos, é uma daquelas pessoas que nos emociona ao contar sua história de vida. Exemplo de determinação e coragem, a presidente emérita e vitalícia da entidade que leva seu nome, Fundação Dorina Nowill Para Cegos, ficou cega aos 17 anos, por uma patologia até hoje ainda não explicada pela medicina. Engana-se quem pensa que ela se deixou abater pela cegueira. Ao contrário, dedicou sua vida a conquistar espaço para que pessoas como ela também tivessem seus direitos respeitados.
Tudo começou em 1946, quando Dorina reuniu um grupo de voluntários e criou a Fundação para o Livro do Cego no Brasil, organização que, em 1991, recebeu seu nome em reconhecimento ao trabalho em prol da educação, reabilitação, cultura e profissionalização de pessoas cegas ou com baixa visão e na prevenção da cegueira. Dorina foi a primeira aluna cega a estudar com estudantes com visão normal. Formou-se professora na Escola Caetano de Campos e, ainda como aluna, conseguiu que a mesma implantasse o primeiro curso de professores para o ensino de cegos, em 1945. Depois de formada, viajou para os Estados Unidos com uma bolsa de estudos patrocinada pelo Governo Americano, Fundação Americana para Cegos e Instituto Internacional de Educação para freqüentar um curso de especialização na área de deficiência visual na Universidade de Columbia e realizar estágios nas principais organizações de serviços para cegos.
Iniciou as atividades da Fundação, em São Paulo, ao implantar a primeira imprensa para produzir livros em Braile e foi responsável pela criação, na Secretaria de Educação de São Paulo, do primeiro Serviço Especial para Educação Integrada de Alunos Cegos na Escola Comum. De 1953 a 1970 dirigiu o primeiro órgão nacional de educação de cegos no Brasil, criado no Ministério da Educação, Cultura e Desportos, para implementar a criação de serviços especiais de educação de cegos e capacitação de profissionais para esses serviços ainda incipientes ou inexistentes na época. Dorina também trabalhou com organizações mundiais de cegos e órgãos da ONU, representando oficialmente o Brasil.Ao longo de sua trajetória sempre se preocupou com a prevenção da cegueira, atuando diretamente na implantação de programas para esse fim. Durante os 60 anos de existência, a Fundação já produziu mais de mil títulos (100 mil volumes) e atendeu mais de 10 mil pessoas nos diferentes serviços, ajudando os deficientes visuais a assumirem o seu papel de cidadãos independentes.
O reconhecimento mundial da atuação da professora Dorina a favor do desenvolvimento e da inclusão social de pessoas com deficiência visual é concretizado por meio de inúmeros prêmios, condecorações, títulos, comendas e outros, concedidos por organizações de todo o mundo, pelo governo e por organizações brasileiras.
Mãe de cinco filhos, Dorina tem 12 netos e uma habilidade ímpar para fazer tapetes utilizando a técnica Smirna. “Já fiz mais de 30”, lembra, contando que adaptou a máquina de tecer para o Braile. Sem falar nos dotes musicais: toca piano, violão e órgão. Em 1996 publicou o livro “… e eu venci assim mesmo”. Dorina recebeu a reportagem do Guia da Vila Madalena em sua casa, em Pinheiros, para esta entrevista.
Quais as principais lembranças da época em que estudava?
Minha mãe relutou muito quando fui convidada para estudar no Caetano de Campos. Teria que ficar lá o dia inteiro e não tínhamos carro. Para ela ir me levar e ir buscar todos os dias, era complicado. Então, fizeram um levantamento das alunas que moravam perto da minha casa e uma das meninas se prontificou a me levar todos os dias. Por fim, as outras acabavam ajudando também e a coisa se tornou mais fácil do que esperávamos. Tomávamos o bonde Pamplona, quase na Avenida Brasil, até a Catedral. Do largo da Sé atravessávamos a cidade toda para irmos até à escola. Aos poucos começamos a achar graça no percurso. Parávamos na leiteria para comer uma torrada gostosa… As memórias de São Paulo são muito boas. Sempre foram. Nasci e fui criada aqui. Quando fiquei cega tinha um grupo grande de amigas, uma vida até bem agitada. Estava aprendendo a costurar. Tinha um professor de inglês; mamãe só lia em italiano para mim, tinha bons conhecimentos de francês, então eu dominava os idiomas com facilidade.
A senhora disse que gostava muito de sair. Quais eram os programas preferidos que fazia com as amigas?
Ah, saía! Mas saía em termos. Não era sair como hoje. A gente ia ao cinema. Tinha matinê na sala vermelha do Odeon e tinha o Paramount, os principais cinemas. Sempre ia uma das mães ou todas as mães com a gente. Sentávamos em uma fileira, os namorados ou conhecidos sentavam na fileira de trás, e as mães atrás deles. Eu não saia sozinha, nunca fui a uma festa sozinha. Papai não deixava sair como essa turma hoje vai para bares à noite. Isso nem pensar!
E como foi para a senhora abrir tantos caminhos, como ser a primeira aluna cega a ser matriculada em uma escola regulamentar?
Foi uma novidade para mim. Eu passei a estudar normalmente, como todo mundo. E os professores faziam provas orais, eu participava dos estudos em grupo. E um dia pedi para minha professora se meu grupo não podia fazer um estágio no Instituto Padre Chico para ver como nós podíamos aplicar o que estávamos aprendendo para as crianças cegas. E foi aí que começou esse trabalho. Tudo que fazíamos com crianças videntes fazíamos com crianças cegas no Padre Chico. E um dia eu disse à professora: Vamos sair daqui sem um diplominha? Ela respondeu que só o departamento de educação poderia resolver. ‘Vai com a minha bênção. Você é suficientemente louca para ir lá pedir’. Nunca me esqueci dessas palavras dela. E eu fui e consegui. Mas eles quiseram que uma banca nos avaliasse e um professor de biologia resolveu que faria argüição oral. Pior para mim, não é? Para as outras eram quatro perguntinhas; para mim ele perguntava a matéria inteira! Que vantagem Maria levava? (risos)
Era um desafio muito maior…
Era, mas eu levei tudo na brincadeira. Eu estudava muito mesmo. Batia todos os pontos, levava um caderno para casa e tinha uma empregada, que eu alfabetizei, que ditava para mim. Como não tinha papel bom, por causa da situação de guerra que vivia o mundo, usava as folhas de uma revista chamada Revista da Semana. O papel era uma beleza! A revista era toda impressa, mas não adiantava nada, porque eu não enxergo. E essa revista já estava encadernada. Eu colocava na minha máquina Braile e ela já saia pronta. Eu estudava com a Revista da Semana. Escrevia em Braile por cima da impressão. Quer dizer, tudo se arranja, não é? Tudo isso foi nascendo, eu participava de tudo intensamente.
Então, a cegueira não foi barreira para conquistar tudo que queria?
Bom, não existia nada para ser conquistado. Mas eu não sentia, porque quando, por exemplo, surgiu a oportunidade de estudar, foi tudo sendo resolvido. As barreiras foram suplantadas até com uma certa facilidade. Eu não lembro de esforço. Não foi brincadeira voltar a estudar, eu estava há seis anos fazendo mil tratamentos, ficava mais deitada porque como era problema na retina não podia ter vibração. Durante muito tempo fiquei em um hotel fazenda em Valinhos e não podia andar mais de cem metros por dia. Fiz tratamentos, tomei remédios para operar o olho esquerdo, porque do direito fiquei totalmente cega. Não teve o que fazer. E ninguém até hoje sabe qual foi a causa. Freqüentei a Caetano de Campos, fugia da aula como todo mundo, voltei a ir ao cinema porque eu sabia um pouco de inglês e também tinha os filmes em francês… Espanhol não tinha problemas. Com três ou quatro línguas a gente se vira, não é? Eu participei integralmente de tudo, de todos os trabalhos de grupo, e eu, claro, pensava na pessoa cega. Hoje, por exemplo, falo com os designers que quando eles bolam as coisas, eles têm que pensar que no mundo não há somente pessoas de audição normal, de visão normal. Eles precisam pensar também nas possibilidades porque isso vai facilitar a vida de todo mundo.
Para a senhora, hoje, o que representa a Fundação Dorina Nowill?
la é uma organização da comunidade, uma ong, como se fala. É uma das mais antigas. Há muitas instituições, mas semelhantes à Fundação não, pois ela foi criada para facilitar o acesso das pessoas cegas a tudo o que precisam, como educação, saúde e trabalho. E, na época em que a criamos, o grande enfoque era o livro. Havia apenas uma empresa que produzia livros em Braile, o Instituto Benjamin Constant, escola do Governo Federal, no Rio de Janeiro. E precisávamos de livros. Eu aprendi o Braile no Instituto Padre Chico. Aprender a ler Braile é um indício de que você não vai voltar a ver. E, naquela época, havia apenas cartilhas e poucos livros em português e em francês em Braile. Depois que aprendi o Braile, no Padre Chico, fui para o Instituto Caetano de Campos. Eu tinha uns 23 anos. Nunca imaginei onde ia parar tudo isso. Quando eu iria imaginar o que é hoje? Mas nem pensar… Primeiro que, ao ficar cega, você nem se pergunta se isso pode acabar. Você faz mil tratamentos e ninguém pensa que vai ficar a vida inteira assim. De modo que a gente vai vivendo e as coisas vão se sucedendo. Tem uma hora em que se sente que as coisas não melhoram mesmo. Eu tive a sorte de logo aprender o Braile, depois ir para a Caetano de Campos, e a vida sempre foi muito movimentada. Sempre fui muito inclusiva. Isso de ficar no lado não está com nada! Meu sonho era que os cegos estudassem com quem enxerga. Na antiguidade, ao se estudar a história e a filosofia da educação de cegos, se vê que eles eram educados com pessoas videntes. Não tinha escolas para cegos. E havia teólogos cegos, filósofos… Teve até um cego, um físico, que trabalhou com (Isaac) Newton na teoria de luz e cor. Só depois, quando surgiram as escolas, é que começaram a separar. No início, trouxemos imprensa Braile para o Brasil e todo o planejamento de professores e técnicos. Foram as duas coisas essenciais para começar. Prédio nunca foi problema para nós. Eu dava aula de prevenção da cegueira no porão da Caetano de Campos. Depois fui para o terceiro andar. Às vezes, dizem que é preciso ter tudo para começar alguma coisa. Eu digo que é preciso ter alguma coisa. O tudo vem se você tiver sucesso.

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